O território da Chapada do Araripe é muito amplo. Ele extrapola as divisões políticas criadas pelo ser humano branco, colonizador, que no passado usou desse artifício como forma de garantir o domínio sobre o território e facilitar a sua administração.
No entanto, como estamos podendo observar, a cultura dos povos que habitam as várias faces da Chapada do Araripe, seja no Pernambuco, no Ceará ou no Piauí, assemelham-se em diversos aspectos e isso se reflete na paisagem, na cultura e nos costumes.
No último dia do Ciclo de Formação de Redes, uma pequena, porém significativa, parcela dessas experiências, foram apresentadas através dos relatos de dois importantes agentes culturais das cidades de Exú e São José do Belmonte, ambas no Pernambuco, onde se debruça a face sul do Território da Chapada do Araripe.
Exu e o Sertão do Araripe: conexões históricas e culturais na Chapada do Araripe
Cícero Marcelino, Coordenador de Turismo de Exu, especialista em Desenvolvimento Sustentável no Sertão do Araripe, iniciou a sua fala afirmando que Ceará e Pernambuco possuem alguns elos. Entre eles, o músico Luiz Gonzaga e a heroína Bárbara de Alencar.
“A Chapada nos une e isso vem de muito tempo”, disse Cícero, lembrando que seu município possui cerca 300 anos de história de formação territorial que favoreceu a conexão entre o Sertão do Araripe e o Sertão do Cariri.
“Os nossos antepassados criaram valas entre a Chapada, chamadas de camarinhas, para encurtar as distâncias entre Exu e Crato. Alguns dizem que eram passagens de animais, mas também dizem que pessoas também a usavam”, o que favoreceu ao longo do tempo uma troca de serviços, de cultura, dialetos, costumes e festas.
Para Cícero, o exemplo mais forte dessa integração está na música de Luiz Gonzaga que sempre se referia a esse território de maneira unificada, ao cantar sobre hábitos e aspectos culturais das cidades dos dois lados da Chapada, o que pode ser conferido nas parcerias com Patativa do Assaré, com o iguatuense Humberto Teixeira e oroense Raimundo Fagner, entre outros.
O Sertão do Araripe também possui um rico patrimônio fossilífero.
Baseado nos trabalhos científicos da paleontóloga Dra Alcina Barreto, Cícero afirma que não há diferença em relação aos encontrados em Santana do Cariri, no lado cearense da Chapada. Em Exu já foram descobertos fósseis conservados de animais que viveram há mais de 100 milhões de anos como pterossauros, tartarugas e caranguejos.
Também há a existência do registro da passagem dos povos primitivos no Sertão do Araripe, que possui pinturas rupestres no complexo arqueológico da Pedra do Caboclo, reconhecida pelo IPHAN-PE, que datam de cerca de 3 a 6 mil anos. “A marca utilizada na identidade da Mostra Internacional de Património e Turismo Chapada Cultural do Araripe é uma mão que foi deixada pelos habitantes primitivos na Pedra do Caboclo”.
Os diversos patrimônios elencados por Cícero, na sua visão, evidenciam que há uma identidade cultural que une os dois lados da Chapada e que todas essas peculiaridades tem contribuído para o desenvolvimento da região, através de diversas ações, a exemplo do trabalho integrativo para a promoção do Turismo de Base Comunitária entre o Município de Exu e a Agência de Turismo Comunitário, da Fundação Casa Grande, de Nova Olinda e sensibilização das comunidades sobre a importância desses patrimônios.
Essas ações têm proporcionado, além da valorização e reconhecimento das potencialidades da cultura do Sertão do Araripe, subsídios para desenvolvimento da economia criativa através da venda de produtos produzidos pela comunidade.
Cícero também destacou a figura de Bárbara de Alencar, nascida em Exú e que fez história na cidade do Crato, ao lutar contra a coroa portuguesa pela libertação do Brasil.
Além de todos os aspectos históricos que unem os povos da Chapada do Araripe, Cícero relacionou eventos culturais, como a Pega do Boi, no município de Granito, a festa da padroeira da comunidade de Zé Gomes, no Exu, eventos como Saberes da Cantiga, Mostra Gonzaguiana e outros.
“Não existe uma fronteira. Ela se quebra com as nossas culturas e nossas tradições e com esse sentimento de pertencimento, valorização e interiorização do que a gente sente pela nossa terra, nosso lugar, por nossas paixões, a gente consegue desenvolver o nosso território”.
Cícero finalizou sua apresentação com uma frase que ouviu de Alemberg Quindins, numa boa rodada de café, em uma de suas visitas à Fundação Casa Grande, que foi anotada em guardanapo “O Brasil é um país que vai ser grande com um pequeno de cada canto”.
De reduto dos indígenas Kariris a um lugar de sacrifícios: A Pedra do Reino contribuindo para o desenvolvimento do território.
A segunda participação da mesa foi proferida por Valdir Nogueira, membro da Associação Cultural Pedra do Reino, de São José do Belmonte, também no Pernambuco.
Na oportunidade, Valdir apresentou um pouco da história que envolve o município de São José do Belmonte em torno da história da Pedra do Reino, que povoa o imaginário daquela população desde meados do século XIX e que se conecta, em alguns aspectos, com a própria Chapada do Araripe e as cidades do entorno.
O principal equipamento turístico de Belmonte, forma resumida como Valdir se refere à cidade, é a Pedra do Reino, lugar onde surgiu uma lenda que criou um movimento cultural e uma festa que tem contribuído para o desenvolvimento da cidade.
Valdir fez um breve histórico a respeito da história da Pedra da Pedra Reino, que na verdade, trata-se de dois grandes rochedos que se sobressaem em meio a outras rochas, localizadas na Serra do Catolé, um antigo reduto de indígenas da nação Kariri, que fica bem próxima ao entroncamento das divisas dos Estados de Pernambuco, Ceará e Paraíba.
A história mais recente do lugar é conhecida por suas características sangrentas, envolvendo pessoas que ocuparam o lugar em meados do século XIX, embaladas por um movimento sebastianista, liderado inicialmente por um caboclo chamado João Antônio dos Santos, filho de um homem branco e de uma mulher indígena Kariri.
De posse de um cordel, o caboclo teve acesso à história que relatava o desaparecimento do Rei Dom Sebastião de Portugal, ainda no século XVI, em uma batalha, fato que gerou uma crise dinástica naquele reino. Os portugueses, inconformados com o acontecimento, criaram uma lenda que dizia que o rei iria retornar algum dia e restabelecer a autonomia do país.
Essa lenda ganhou campo na mente de João Antonio que propagou a ideia de que Dom Sebastião iria ressurgir naquela região da Serra do Catolé, mais precisamente, no local das enormes rochas. A lenda envolvendo o ressurgimento de Dom Sebastião, foi o alicerce para criação de uma crença que envolvia sacrifícios humanos que, entre 14 e 16 de maio de 1838, deu cabo da vida de 53 pessoas e 14 cães.
Conforme Valdir, a história foi documentada pela igreja católica e pelo Estado, na época, e ao longo do tempo por escritores como Antônio Áttico Leite de Sousa (Memória do Reino Encantado), José Lins do Rego (Pedra Bonita e Cangaceiro) e, muito tempo depois, Ariano Suassuna (Romance da Pedra do Reino e o Sangue do Príncipe do Vai e Volta).
Valdir disse que a partir do romance de Suassuna, as pessoas passaram a ter mais interesse pela Pedra do Reino, “inclusive seus próprios habitantes, que antigamente viam todos esses fatos com muito preconceito, e a cidade passou a explorar a história do lugar. Em 1993 foi criada a cavalgada da Pedra do Reino e São José do Belmonte passou a se redescobrir a partir desse monumento natural e isso tem mudado a vida das pessoas”.
A festa em São José do Belmonte acontece no final do mês de maio e reúne milhares de pessoas em torno da cavalhada e, também, da cavalgada que sai da sede do município para a Serra do Catolé, onde se encontram os monumentos rochosos. “As pessoas estão se descobrindo e aproveitando tudo de positivo que [esse movimento] tem trazido para o Município. A festa tem crescido e vem promovendo uma interação muito grande entre as culturas dos municípios que se limitam com São José do Belmonte”, concluiu Valdir.
Imagens: TV Casa Grande e Heloísa Bitú.
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